quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

ENGRAÇADO: "UM GRÃO DE AMENDOIM PASSAR A TER IMPORTÂNCIA, VALOR, PARA ALGUÉM!" MAS É. VEJAM COMO ACONTECEU.

Beroud, HAITI, 18 de janeiro de 2011.
Caros amigos,olá! Paz e Bem!Tudo bem?

Acredito que nem sempre conseguimos expressar tudo o que sentimos, tudo o que está se passando em nossas vidas, através de alguns tipos de comunicação, como msn, skype, e-mail, etc., porém, muitas vezes, é tudo o que temos, apenas conseguimos mandar notícias por meio deles. Sem sombras de dúvidas, melhor seria se conseguíssemos estar frente a frente, olho no olho, assim, seríamos capazes de compreender aqueles sentimentos, aquelas emoções, que as palavras nem sempre conseguem dizer. E, mesmo sabendo de tudo isso, justamente por ser o único meio em que conseguimos nos comunicar, venho por meio desse tentar falar sobre uma experiência muito simples, porém, cheia de significados que se passou comigo aqui no Haiti.

Na primeira correspondência que enviei a vocês falei sobre uma caminhada que fiz para visitar uma comunidade pertencente a paróquia de Abacou, tal caminhada que durou mais de duas horas. Penso que escrevi quando estava comentando alguma coisa sobre as estradas, que por sinal não são nada boas. Então, podem até achar que estou exagerando, mas não, não estou exagerando, nessa caminhada aprendi a dar valor a um grão de amendoim. Justamente isso, a partir desse momento até um grão de amendoim passou a ter importância, valor. Nossa! Se eu é que estivesse lendo isso, até soltaria algumas gargalhadas... ‘um grão de amendoim passar a ter importância, valor, para alguém!’ Mas é. Vejam como aconteceu.

Não eram nem 7 horas da manhã quando partimos para visitar a comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Lembro que, para os que não sabem, ela é a padroeira do Haiti. Esta comunidade já tinha a fama de ser a mais longe, que teríamos que caminhar por um bom tempo. Eu, frei Sérgio Defendi, dona Lucila, mãe de frei Sérgio, e mais dois amigos haitianos, um que chama-se Joseph Mio, e, o outro, infelizmente não sei o nome e não mais o vi para perguntar, mas, o chamávamos de Juca. A caminha, apesar de longa, foi divertida, eu e dona Lucila até batemos um corrida. A estrada, como comentei, não é nada boa, por onde fomos, carros nem pensar em passar, e nem motos. O transporte que se utiliza, quem têm, é cavalos, burros e mulas. Subidas... descidas... subidas... descidas. Muitas pedras. Meu chinelo novo, que ganhei alguns dias antes de vir para o Haiti, já estava, em todo o momento, soltando as tiras da sola e com, pelo menos, um furo que o atravessava. Ah! Falando em chinelos, ganhei dois em Nova Alvorada de algumas pessoas especiais, antes de partir para o Haiti. Um, esse da caminhada, já está, como disse, em todo o momento, perdendo as tiras, e o outro, já precisou ser costurado; aqui em Beroud não se tem luz todo o dia, normalmente apenas em dois curtos espaços de tempo. Caminhando em uma noite, sem luz, acabei por tropeçar e romper uma das tiras. Olhem só até o que pode acontecer com quem caminha no escuro! Acho que logo terei que comprar um novo. Enfim, preciso voltar ao assunto da caminha, tenho essa mania de comentar alguns detalhes e deixo o assunto que estava me referindo de lado. Mas, continuando...

No caminho, apesar das pedras, das longas subidas que nos deixavam cansados ao extremo, dos buracos, da estrada que tínhamos que sempre estar atentos olhando para o chão, nos defrontamos com lindas paisagens onde conseguimos contemplar a presença de Deus. Penso que essa caminhada foi uma breve demonstração do que acontece com todos nós durante a nossa peregrinação terrestre, o que acontece no decorrer de nossas vidas. Muitas vezes o caminho é cheio de espinhos, pedras, encruzilhadas, momentos onde o cansaço toma conta, em que pensamos que o fardo é mais pesado daquilo que podemos carregar, em que até pensamos em desistir, porém, ao final da próxima subida, a sombra de um grande pé de manga nos permite parar, descansar, enquanto a brisa suave do vento seca nosso suor, e, mais do que imaginávamos, a linda visão de um mar lá no fundo, lá embaixo, nos é dada para que possamos admirar.

No meio do caminho também pudemos encontrar um pouco mais da cultura típica do Haiti. Ao passarmos um riacho nos deparamos com algumas mulheres que estavam tomando banho. Sim! Elas estavam seminuas. Num primeiro momento fiquei sem jeito, meio que envergonhado, sem saber o que fazer. Até pensei em pedir desculpas, mas não sabia como seria em creol, então, precisei ficar calado. Porém, fui percebendo que para os nossos amigos haitianos que estavam nos acompanhando na caminhada, como também para frei Sérgio que já faz um ano que está aqui no Haiti, esta cena era natural, não lhes causou nenhuma reação de espanto. Saudaram as mulheres, se não me engano eram três, mais uma que não estava se banhando, começaram a conversar, e elas também, da mesma forma que paramos para conversar com alguém conhecido no Brasil quando nos encontramos na rua. Claro, e eu também procurei ser gentil, as saudei. Aquela feição de surpresa foi aos poucos passando no meu rosto e quando notei já estava trocando algumas breves palavras em creol, aquelas que até então sabia. Nos despedimos, elas continuaram o banho, e nós continuamos a caminhada após molhar os pés e lavar o rosto naquelas lindas águas transparentes. Mesmo sabendo que não seria necessário naquela circunstância, quando cheguei em casa, logo fui procurar a tradução da palavra ‘desculpas’. No creol, para pedir perdão a alguém se diz ‘eskize m’ (desculpa-me).

Até que enfim conseguimos chegar na comunidade, chamada também de Boulay. Ela é simples, muito simples, porém, portadora de uma beleza inigualável. Fica no alto de um moro, na frente, conseguimos ver o horizonte. Em suas portas, nas suas paredes, em cada detalhe, conseguimos ver, sentir vida. Uma comunidade por excelência. Uma comunidade onde as mãos do povo simples, sofredor, cheio de fé, continuam intactas em cada canto. Uma comunidade onde não foram contratados pedreiros, profissionais, mas sim, onde a união do povo construiu, onde o povo construiu. Chegamos correndo e molhados. Alguns metros antes, Deus nos presenteou com uma linda chuva.

Após fazermos uma oração, procuramos ficar em silêncio, fazer as nossas orações pessoais e descansar um pouco. Deitei em um dos bancos e acabei pegando no sono. Também, pensem só: com aquela música harmonizada que a chuva compunha ao bater no telhado da capela, como não iria, cansado, pegar no sono? Acredito que durou uns 20 minutos, e, claro, tenho certeza que meu sono foi abençoado, pois estava dentro de uma Igreja. No lado da capela, como se fosse um ‘puxado’, há duas salas de aulas onde as crianças cursam os três primeiros anos de alfabetização. Aliás, essas duas salas é uma escola. Uma escola onde quadros não existem, apenas algumas paredes levantadas que formam essas duas salas e alguns bancos. Certamente algumas crianças sentam no chão. Mas, acredito que quando está cheia de alunos ganha outra cara, se transforma. O sorriso e a vontade de aprender de cada criança, tenho certeza, é o colorido das paredes, o verde dos quadros que não existem, a alma da escola.

Meus amigos, vocês virão como eu sou! Queria ser breve, logo comecei a descrever sobre os amendoins que seria o assunto que gostaria de dar mais atenção, e já estou terminando a carta e nem contei sobre a história que eles aparecem. Nas próximas farei o possível para ser diferente. Mas, mesmo assim estou feliz. Vocês refizeram comigo a caminhada! Muito obrigado! Então, Adani, voltando para a caminhada, retomamos o caminho de casa...

Logo que saímos, na primeira casa que encontramos, muito humilde, humilde mesmo, simples, pobre, fomos calorosamente por uma moça convidamos para entrar. Pensamos em trocar algumas palavras, breves, e logo partir. Sentamos na área. A moça simpática que nos convidou, falou duas, três palavras, e logo saiu, nos deixou sozinhos. Alguns longos minutos depois voltou carregada de cocos. E, para minha admiração, abriu-os para que nós pudéssemos tomá-los. Isso foi incrível! Aprendi com ela, na prática, aquilo que minha querida avó Antônia Guerra sempre diz: “faça o bem e não olhe a quem”. Eu escrevendo, até parece que é mentira, utopia, imagina vocês. Mas, meus amigos, aconteceu mesmo. Esta é a cara do Haiti que não nos é mostrada, essa é a cara que precisamos conhecer! E, ainda tem mais. Antes de nós sairmos, procurou na pobre cozinha, que fica construída ao lado da casa, uma cozinha sem fogão, sem geladeira, sem pia, sem tudo o que costumamos encontrar naquela peça das nossas casas que chamamos cozinha, num local onde apenas é feita a comida em fogo de chão e guardados alguns alimentos, que nem por isso deixa de ser cozinha, alguma coisa que pudéssemos levar para nos alimentar no caminho. Encontrou alguns amendoins, tudo o que tinha, teve o trabalho de sapecá-los, e, após, se despedindo, nos deu, para que pudéssemos nos alimentar no caminho.

Eu levei a sacola, fomos comendo e caminhando. Sei que aquilo poderia alimentar aquela família, que realmente iria fazer falta, porém, ela repartiu conosco, nos deu, e isso foi de coração. Quando no caminho, sem querer, algum grão caia no chão, eu realmente sentia, cada grão tinha um grande valor. É, sempre temos algo a aprender com os outros...

Meus irmãos, já está tarde e preciso descansar, amanhã o dia será cheio também. Espero que este relato tenha os ajudado a refletir e rezar um pouco também. Certamente o barulho da chuva que neste momento cai embalará meu sono. Antes, rezarei. Que Deus nos conduza...

Até logo!Um grande abraço,
Frei Adani Carlos Guerra, OFMCap.

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